Estudo de caso: Um olhar sobre 337 dias de pagamentos com dinheiro descentralizado (parte 1)
Neste relatório apresento análise empírica sobre a experiência de pagamentos com bitcoin e nano; realizados na pool de mineração 2Miners para seus mineradores de Ethereum.
INTRODUÇÃO
Em seu livro “A Desestatização do Dinheiro”, o autor, economista e filósofo austríaco, Friedrich August von Hayek defende a existência do dinheiro privado de adoção voluntária em um mercado competitivo, ante a ideia do dinheiro estatal de curso-forçado.
Na imaginação popular, porém, o termo “moeda de curso-legal” viu-se cercado por uma penumbra de ideias nebulosas a respeito da suposta necessidade de o estado estabelecer a moeda. (...) Entretanto, isso só é verdadeiro na medida em que o governo pode forçar-nos a aceitar o que bem entender em lugar daquilo que contratamos; (...) Certamente pode existir dinheiro, e mesmo muito satisfatório, sem qualquer intervenção do governo, embora raramente tenha sido permitido que esse dinheiro existisse por muito tempo.
(HAYEK, 2011, p. 44)
Na grande maioria de nossas interações com o dinheiro acabamos optando pela opção de menor fricção, utilizando a forma de dinheiro mais amplamente aceita pela sociedade, mesmo já diante da possibilidade de explorar uma variação do que foi idealizado por F.A. Hayek em uma época onde a existência de sistemas descentralizados de dinheiro digital nem mesmo havia sido imaginada, ao considerar sua publicação original em 1976.
Neste artigo pretendo explorar, de forma prática, as consequências da escolha voluntária de diferentes moedas descentralizadas e não-estatais que competem entre si pela demanda de pagamentos transfronteiriços em alto volume, abordando principalmente três diferentes competidores que conquistaram sua fração de adoção com suas próprias forças e fraquezas.
Quatro usos do dinheiro teriam um impacto maior sobre a escolha entre os tipos disponíveis de moeda: em primeiro lugar, seu uso para compras à vista de bens e serviços; em segundo lugar, sua utilização para manutenção de reservas visando a necessidades futuras; em terceiro lugar, seu emprego em contratos para pagamentos futuros e, em quarto e último lugar, sua utilização como unidade de cálculo. (HAYEK, 2011, p. 78)
No estudo de caso que será relatado nas próximas páginas, foi possível observar cada um destes quatro comportamentos de uso sendo aplicados diretamente através das escolhas individuais e do modelo de negócio desenvolvido pela pool de mineração 2Miners.
Entre os competidores, encontramos: (A) ether (ticker: ETH), o token nativo da blockchain descentralizada de primeira camada, Ethereum, descrito pela primeira vez em 2014 na edição inicial de seu whitepaper, publicado por Vitalik Buterin; (B) bitcoin (ticker: BTC), primeira criptomoeda descentralizada a alcançar adoção relevante na sociedade, descrito como “um sistema de dinheiro eletrônico peer-to-peer” (NAKAMOTO, 2008); (C) nano (ticker: XNO), inicialmente denominada RaiBlocks em seu whitepaper, publicado em 2014 por Colin LeMahieu e renomeada para Nano em 31 de janeiro de 2018, operando na mesma rede descentralizada e sob o mesmo protocolo.
Para entender as dinâmicas e fatores que podem ter influenciado nas escolhas entre as três alternativas e também todas as consequências e efeitos destas escolhas de um ponto de vista empresarial e individual do uso do dinheiro, vamos retornar cerca de 11 meses no tempo para a publicação do anúncio que deu origem ao caso estudado.
I. POOL 2MINERS E PAGAMENTOS
No dia 11 de outubro de 2021, a pool de mineração 2Miners publicou um anúncio sobre a implementação de uma nova forma de pagar os mineradores pelo trabalho realizado na mineração colaborativa de Ethereum em sua plataforma. Permitindo pagamentos sem taxas, ou com taxas reduzidas:
“Como conseguir pagamentos sem taxas para a mineração de Ethereum.
Estamos lançando um novo sistema de pagamentos na Pool de Ethereum 2Miners. Isso irá permitir com que os usuários evitem as taxas de Ethereum quando receberem transações da pool.” (PIOTROWSKI, 2021, blog 2Miners)
No dia 24 de novembro, conforme registrado pela matéria jornalística assinada por mim (2021), de título: “Pool de mineração revoluciona forma de pagar mineradores economizando R$ 55 milhões em taxas; entenda”; a cooperativa ocupava a quarta posição entre as principais mineradoras de Ethereum, com produção de hashrate de 32,7 TH/s e cerca de 70.000 mineradores conectados.
Conforme será demonstrado neste documento, esses números representam um crescimento significativo em um período de 30 dias na produção na rede do Ethereum e, consequentemente, seu faturamento decorrente das recompensas de mineração; potencialmente ocasionado pelas decisões empresariais relacionadas com esta nova forma de pagamento que atraiu mais colaboradores para a cooperativa, oferecendo maior rentabilidade para estes trabalhadores e também para o negócio – em um cenário win-win (ganha-ganha), onde ambas as partes foram beneficiadas.
Na sequência, vou apresentar alguns dados do período de 337 dias, desde o primeiro pagamento realizado pelo método alternativo, no dia 15 de outubro de 2021, até o último pagamento no dia 14 de setembro de 2022 – com a migração do Ethereum de Proof-of-Work (PoW) para Proof-of-Stake (PoS), encerrando a atividade de mineração na rede.
Com isso pretendo, não apenas demonstrar o crescimento observado da 2Miners como empresa, mas estudar todos os efeitos que possivelmente ocasionaram este crescimento e todos os benefícios atrelados a um método de pagamentos com menores taxas e menor latência.
A) DEFININDO POOL DE MINERAÇÃO
Uma pool de mineração pode ser definida como um grupo de indivíduos que colaboram entre si para a geração de provas de trabalho (proof-of-work) no formato de hashes, em uma determinada rede blockchain, para aumentar a chance de encontrar um bloco válido e dividir a recompensa de bloco entre os participantes, através de um método de distribuição pré-acordado.
Existem diferentes maneiras de se constituir uma pool de mineração e também de se determinar o formato de pagamento correspondente das recompensas entre os colaboradores. Com modelos centralizados e descentralizados.
No que se refere à governança, o modelo mais comum do mercado é no formato centralizado, onde uma empresa, ou indivíduo, é responsável pela administração da pool; criação dos blocos de transações; transmissão do bloco para a rede; coleta da recompensa de bloco; e distribuição, no formato de pagamentos, para os trabalhadores da pool. Este é o formato de nosso objeto de estudo.
Além do modelo de governança, foram desenvolvidos também alguns diferentes modelos de metrificação de contribuição e cálculo do valor correspondente de pagamento pelo trabalho gerado. Entre eles: PPS, PPS+, FPPS e PPLNS, sendo o utilizado pela Pool2Miners.
B) MÉTODO DE PAGAMENTO DA POOL2MINERS
No caso da pool de mineração 2Miners, o modelo de pagamentos utilizado é o PPLNS, desenvolvido pela Ethermines e, atualmente, o modelo mais adotado por pools de mineração no mundo.
Através do PPLNS, quando um bloco é encontrado pela pool, inicia-se uma nova rodada de pagamentos que avalia toda contribuição de trabalho individual, medido pela hashrate gerada, dos colaboradores de forma retroativa até a rodada anterior no penúltimo bloco descoberto. Um pagamento então é feito proporcional à participação individual de cada um.
Figura 1 – Infográfico PPLNS
De forma prática, para a mineração de Ethereum, sempre que um novo bloco na rede era encontrado, a 2Miners coletava a recompensa de bloco em ether e reservava o proporcional de cada “minerador” através de um saldo na plataforma, mantendo estes saldos sob custódia até que atingisse um valor X pré-determinado, ou após solicitação do minerador, somente após atingir o valor Y mínimo – variável de acordo com as taxas (gás) da rede.
C) DEMANDA: UM PROBLEMA PRECISA SER RESOLVIDO
O novo modelo de pagamentos surge em um momento quando as taxas de gás da rede do Ethereum atingiam valores recordes, dificultando o pagamento de pequenos e médios trabalhadores, além de absorver uma porcentagem muito significativa do lucro de cada um deles.
Figura 2 – Taxa média de transação na rede do Ethereum em USD (11/10/2021: $33,527)
No comunicado, por exemplo, a administração da pool disse o seguinte:
Como resultado [das altas taxas de gás], também prejudica os mineradores. A pool envia pagamentos somente quando a taxa de transação atinge um nível aceitável: menos de US $7,60 por transação. O resto do tempo, os mineradores precisam esperar seus pagamentos na esperança de que o preço do gás no Ethereum diminua. (PIOTROWSKI, 2021)
Os pagamentos, então, nem sempre eram realizados. Com os mineradores tendo de aguardar um momento favorável dentro da dinâmica de taxas e, mesmo quando este pagamento era feito, muitos destes trabalhadores poderiam perder entre 10% a 20% de seu lucro no ato do pagamento, ao descontar-se as taxas de rede.
Olhemos, por exemplo, a situação de um minerador que receba pagamento diário hipotético de US $335,20 no dia 11/10/2022 (figura 2). Mesmo um pagamento tão elevado em relação à média (anexo 1) perderia 10% em taxas de uma margem de lucro já normalmente baixa, ao considerar os custos naturais da mineração com energia, internet, infraestrutura e manutenção.
A espera também poderia trazer prejuízos indiretos, por conta do slippage – que ocorre quando o minerador tem uma projeção de faturamento X em sua atividade, com base na cotação de ETH/USD no momento do trabalho; e pode aumentar ou diminuir com o tempo. Quanto mais longo o tempo de espera entre o trabalho realizado e o recebimento do pagamento, maior o risco de slippage.
A mineração de Ethereum enfrentava um problema que precisava ser resolvido e a solução veio com a disponibilização de pagamentos em bitcoin e nano. Sendo que o primeiro oferecia taxas menores que em ether, além de em um ativo de maior capitalização e menor volatilidade; enquanto o segundo oferecia pagamentos completamente livres de taxas de rede e recebimento seguro e irreversível em menos de um segundo após o envio. Ambos solucionando parcialmente os problemas do custo de taxas e o risco de slippage – cada um deles com suas vantagens e desvantagens.
De um ponto de vista de eficiência, ao analisar a relação de (A) custo, com as taxas de transação; e (B) velocidade de operação, com o tempo necessário para que cada transação seja concluída – XNO se demonstrou como a melhor opção encontrada pela empresa em todo o mercado de criptomoedas. Conforme afirmado pela própria equipe da Pool2Miners:
Uma coisa lógica a fazer é obter pagamentos por meio de outra rede de criptomoedas que não tenha todos esses problemas. Por isso, estudamos as taxas de transação e a velocidade de operação de moedas populares. Nano acabou sendo a criptomoeda mais adequada. (PIOTROWSKI, 2021)
A disponibilização dos pagamentos em BTC surgiu como alternativa à baixa capitalização e credibilidade da nano; em uma moeda mais reconhecida pelo mercado, sendo líder em capitalização e ainda mais eficiente que ETH para pagamentos. A 2Miners disse o seguinte:
Entendemos que você pode se surpreender com nossa decisão, pois não confia nesta moeda [XNO]. É por isso que criamos outra solução: pagamentos em Bitcoin. O que pode ser melhor? Ao contrário de Nano, o Bitcoin exige uma taxa de transação, mas é muito menor que a do Ethereum. (PIOTROWSKI, 2021)
D) MECÂNICA DO NOVO SISTEMA DE PAGAMENTOS
A mecânica aplicada para possibilitar estes pagamentos em BTC ou XNO foi a seguinte:
Mineradores escolhem como querem receber seu pagamento (ETH, BTC ou XNO);
2Miners faz o cálculo das recompensas com base no PPLNS e nas escolhas individuais;
Para pagamentos em bitcoin e nano, 2Miners envia o correspondente em ether para exchange centralizada com liquidez disponível nos pares BTC/ETH e XNO/ETH;
2Miners troca seu ether por cada uma das moedas, conforme escolha voluntária dos mineradores;
Pool2Miners envia as moedas adquiridas para um endereço não-custodial próprio, em seu controle, chamado de Endereço de Pagamento;
Do Endereço de Pagamento são enviados todos os pagamentos individuais e proporcionais correspondentes para cada trabalhador da pool. Diariamente.
Figura 3 – Infográficos ilustrando mecânica de pagamentos com nano
II. DADOS DE PAGAMENTOS NO PERÍODO
Olhando para os números gerais do período estudado, temos alguns resultados bem relevantes. A maioria dos dados observados são referentes aos pagamentos em nano, graças ao trabalho da comunidade por trás do projeto em coletar e disponibilizar estes dados durante todo o período (anexo 1).
Dias em que foram realizados pagamentos com XNO: 337 dias.
Faremos quatro diferentes análises, olhando para os dados disponíveis, com a intenção de entender o crescimento do negócio e seus efeitos econômicos. As análises serão:
Análise Quantitativa de Adoção, olhando para o número de mineradores/trabalhadores;
Análise Qualitativa de Produção, olhando para a hashrate produzida;
Análise Econômica do Negócio, olhando para os valores financeiros;
Análise Econômica do Negócio, olhando para simulações com diferentes custos/taxas.
A) ANÁLISE QUANTITATIVA DE ADOÇÃO: NÚMERO DE MINERADORES NA POOL
É importante notar que, para o caso de Bitcoin e Ethereum, a métrica número de mineradores não necessariamente significa número de pagamentos. Para Nano, sim, já que todos os colaboradores recebem pagamento correspondente no dia seguinte ao da descoberta do bloco – o que só é possível pela ausência de taxas de rede e alta escalabilidade.
Gráfico 1 – Média diária de mineradores na pool (análise quantitativa)
Média diária de todos os mineradores da pool: 95.827,07 (100%);
Média diária de mineradores de ETH: 51.066,50 (53,29%).
Média diária de mineradores de BTC: 31.313,21 (32,67%);
Média diária de mineradores de XNO: 13.447,36 (14,03%);
O primeiro registro que temos sobre número de mineradores da Pool2Miners data do dia 15 de outubro de 2021, com 47.029,00, dos quais tinham como método de pagamento:
ETH: 43.132,00 (91,71%)
BTC: 1.751,00 (3,72%)
XNO: 2.146,00 (4,56%)
Gráfico 2 – Número de mineradores por método de pagamento em todo o período
No dia 08 de março de 2022, o número de mineradores mais que dobrou, alcançando os seis dígitos pela primeira vez, com 100.051,00 colaboradores conectados à pool ao mesmo tempo – um aumento de 112,74% em 145 dias.
É interessante notar que, neste período, o número de mineradores que recebiam seus pagamentos em ether se manteve em uma constante, o que indica que o crescimento superior a 110% no número de trabalhadores da pool foi devido principalmente à novos participantes recebendo através dos métodos alternativos.
Os números do dia 08/03/2022, com suas respectivas dominâncias entre todo o quadro de colaboradores e seus respectivos aumentos percentuais em relação ao registro do dia 15/10/2021, são o seguinte:
ETH: 47.897,00 (47,87%); aumento de 11,04%
BTC: 35.053,00 (35,04%); aumento de 1901,88% (~20x)
XNO: 17.101,00 (17,09%); aumento de 696,87% (~08x)
O maior número de trabalhadores conectados no mesmo dia foi em 04 de maio de 2022 com 130.561,00 mineradores. Um aumento de 177,61% do Dia 1, desta vez com um protagonismo maior do ether como método de pagamento escolhido e um aumento significativo da dominância sobre os demais. As variações são referentes à média dos 337 dias.
ETH: 66.385,00 (50,85%); +29,99%
BTC: 45.308,00 (34,70%); +44,69%
XNO: 18.868,00 (14,45%); +40,31%
Podemos notar que a dominância de BTC se manteve constante em relação ao dia 08/03/2022, com ETH ganhando 3 pontos percentuais, retirados da dominância de XNO.
No último dia do estudo, 14 de setembro de 2022, um dia antes do The Merge e, consequentemente, do fim da mineração em Ethereum, o total de mineradores na Pool2Miners estava em 93.073,00. Uma redução de 28,71% da máxima, mas dentro da média do período. Demonstrando bastante constância após o grande influxo que ocorreu dentro dos primeiros 145 dias.
Na análise individual de cada método de pagamento, vimos o seguinte – com variação A referente à máxima; e variação B referente à média:
ETH: 50.479,00 (54,24%); A: -23,96%; B: -01,15%
BTC: 33.549,00 (36,05%); A: -25,95%; B: +7,14%
XNO: 9.045,00 (9,72%); A: -52,06%; B: -32,73%
Dentre os três métodos de pagamento, vemos o bitcoin com ótimo desempenho em relação à média, a partir da metade do período até o fim do experimento, em uma constante positiva. Também observamos uma perda significativa de mineradores de nano, mesmo ao ser o método com menor taxa e latência – teoricamente aumentando o lucro de curto prazo.
Ao observar estes eventos em um contexto de mercado, notamos que o período foi marcado por um forte mercado de baixa que minou o valor dos ativos em relação ao dólar desde a alta histórica de preço em novembro de 2021, onde os ativos de maior capitalização tiveram melhor desempenho de preço que XNO. A variação de preço individual entre os dias 10/11/2021 e 14/09/2022 foi a seguinte:
ETH/USD: -68,58%
BTC/USD: -71,56%
XNO/USD: -85,61%
Ao saber que muitos mineradores o fazem [mineram] com a intenção de acúmulo de riquezas para médio e longo prazo, é compreensível que, em um cenário de alta volatilidade negativa, ocorra uma fuga para os ativos de maior capitalização e menor volatilidade, que agem como hedge. Como aconteceu após a máxima do período em 04/05, que antecedeu a maior saída de capital do mercado, com -44,79% até o dia 14/09.
Figura 4 – Gráfico de Capitalização Total do Mercado Cripto
Podemos supor que o desempenho e a especulação de preço sobre cada uma das moedas disponíveis possuem um grande peso na escolha individual de recebimento como método de pagamento. Fato este que varia também de acordo com os ciclos e a volatilidade esperada de mercado, em uma percepção individual de cada trabalhador.
Essa suposição teórica é também apresentada em “A Desestatização do Dinheiro” no segundo dos quatro itens para uso do dinheiro, quando o autor trata do uso como “Reservas para Pagamentos Futuros” onde “Os usuários do dinheiro em espécie (...) prefeririam uma moeda em valorização”. O autor também especifica, no caso de uso seguinte em “Padrão de pagamentos futuros”, que “os credores preferirão uma moeda em valorização e os mutuários uma moeda em desvalorização (...) entre os credores estariam todos os assalariados” (HAYEK, 2011, p. 79).